Apresentamos aqui alguns extratos de uma conferência de Dom Marcel Lefebvre. A dita conferência tem várias qualidades. Além de tratar com profundidade da questão da visibilidade de Igreja em meio à crise terrível que atravessamos, traz o pensamento autêntico de Dom Marcel Lefebvre, tal como ele o expôs aos seus padres pouco tempo depois de Dom Gérard Calvet ter feito seu acordo com o Vaticano, respondendo a alguns argumentos teológicos que este desenvolveu numa publicação do jornal Présent do dia 18 de agosto de 1988. Mesmo se em determinadas cartas, como é natural, S. Exa. tenha falado com maiores cuidados na esperança de mover os adversários a compreender e aceitar a Tradição, não resta dúvida de que seu pensamento estava longe de aceitar o Vaticano II ou a Missa de Paulo VI. Dom Lefebvre responde, assim, com antecedência aos argumentos que tentam justificar a atual posição de Campos. (Nossa tradução é tirada da revista Fideliter 66 de novembro/dezembro de 1988, pp. 27-31).
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A Visibilidade da Igreja e a Situação Atual
Dom Marcel Lefebvre
Meus caros Padres,
Penso que vós que saístes dos seminários e que, estais agora exercendo o ministério e que desejastes guardar a Tradição, vós que desejastes ser padres para sempre, como foram os santos padres de outrora, todos os santos vigários e os santos sacerdotes que nós mesmos pudemos conhecer nas paróquias. Vós continuais e representais verdadeiramente a Igreja Católica. Acredito que é necessário convencer-vos disso: "representais verdadeiramente a Igreja Católica".
A Igreja Visível
Não quero dizer que inexista Igreja fora de nós; não se trata disso. Mas há pouco tempo, disseram-nos que é necessário que a Tradição entre na Igreja visível. Penso que se comete aí um erro muito grave.
Onde está a Igreja visível? A Igreja visível é reconhecida pelos sinais que ela sempre deu de sua visibilidade: ela é una, santa, católica e apostólica.
Eu vos pergunto: onde estão os verdadeiros sinais da Igreja? Estão eles na Igreja oficial (não se trata de Igreja visível, mas da Igreja oficial) ou conosco, no que representamos, no que somos? É evidente que somos nós que guardamos a unidade da fé, que desapareceu da Igreja oficial. Um Bispo acredita nisso, outro já não acredita, a fé é diversa, seus catecismos abomináveis estão cheios de heresias. Onde está a unidade da fé em Roma?
Onde está a unidade da fé no mundo? Fomos nós que a guardamos. A unidade da fé espalhada no mundo inteiro é a catolicidade. Ora, esta unidade da fé no mundo inteiro, não existe mais, não existe mais catolicidade. Existem tantas Igrejas católicas quantos Bispos e Dioceses. Cada um possui sua maneira de ver, de pensar, de pregar, de fazer seu catecismo. Não existe mais catolicidade.
E a Apostolicidade? Eles romperam com o passado. Se eles fizeram algo, foi exatamente isso. Eles não desejam mais o que é anterior ao Concílio Vaticano II. Vede o Motu proprio do Papa que nos condena, ele diz muito bem: "a Tradição viva é o Vaticano II": não se deve reportar mais a fatos anteriores ao Vaticano II, isso não significa nada. A Igreja guarda a Tradição de século em século. O que passou passou, desapareceu. Toda a Tradição encontra-se na Igreja de hoje. Qual é esta Tradição? A que ela se liga? Como ela se liga ao passado?
É o que lhes permite dizer o contrário do que foi dito outrora, sempre pretendendo que somente eles guardaram a Tradição. É o que nos pede o Papa: que nos submetamos à Tradição viva. Nós possuiríamos um conceito equivocado de Tradição, visto que ela é viva e evolutiva. Mas, isto é o erro modernista: o Santo Papa Pio X, na encíclica Pascendi, condenou estes termos: "Tradição viva, Igreja viva, fé viva", etc, no sentido que os modernistas os entendem, ou seja, da evolução que depende das circunstâncias históricas. A verdade da Revelação, a explicação da Revelação, dependeria das circunstâncias históricas.
A Apostolicidade: nós nos vinculamos aos Apóstolos pela autoridade. Meu sacerdócio vem através dos Apóstolos; vosso sacerdócio vem através dos Apóstolos. Nós somos filhos daqueles que nos deram o episcopado. Nosso episcopado descende do Santo Papa Pio V e através dele chegamos até aos Apóstolos. Quanto à Apostolicidade da fé, nós cremos na mesma fé que foi a dos Apóstolos. Nós não mudamos nada e nem queremos mudar nada.
E, enfim, a santidade. Não nos faremos louvores e cumprimentos. Se não quisermos considerar a nós mesmos, consideremos os outros, e consideremos os frutos de nosso apostolado, os frutos vocacionais, de nossas religiosas e também dentro das famílias cristãs. Boas e santas famílias cristãs germinam, graças a vosso apostolado. É um fato, ninguém o pode negar. Mesmo nossos visitantes progressistas de Roma constataram a boa qualidade de nosso trabalho. Quando Mons. Perl disse às irmãs de Saint-Pré e às irmãs de Fanjeaux que é com base como a delas que se deverá reconstruir a Igreja, não é um pequeno elogio.
Tudo isso mostra que somos nós que possuímos os sinais da Igreja visível. Se ainda existe uma visibilidade da Igreja hoje em dia, é graças a vós. Estes sinais, não se encontram mais nos outros. Não existe mais neles unidade da fé; ora, é precisamente a fé que é a base de toda a visibilidade da Igreja.
A catolicidade é a fé no espaço. A Apostolicidade é a fé no tempo, e a santidade é o fruto da fé, que se concretiza nas almas pela graça do bom Deus, pela graça dos sacramentos. É completamente falso considerar-nos como se não fizéssemos parte da Igreja visível. É inacreditável. É a Igreja oficial que nos rejeita, não somos nós que rejeitamos a Igreja, longe de nós. Ao contrário, nós estamos sempre unidos à Igreja romana e mesmo ao Papa, evidentemente, ao sucessor de Pedro. Penso que devemos ter esta convicção para não cair nos erros que estão sendo espalhados agora.
Sair da Igreja?
Evidentemente, poderão objetar-nos: “Deve-se, obrigatoriamente, sair da Igreja visível para não perder sua alma, sair da sociedade dos fiéis unidos ao Papa?”
Não somos nós, mas os modernistas que saíram da Igreja. Quanto a dizer "sair da Igreja VISÍVEL" é equivocar-se assemelhando Igreja oficial e Igreja visível.
Nós pertencemos à Igreja visível, à sociedade dos fiéis sob a autoridade do Papa, pois, não recusamos a autoridade do Papa, mas o que ele faz. Nós reconhecemos que o Papa tem autoridade, mas quando ele a usa para fazer o contrário daquilo que lhe é facultado fazer, é evidente que não podemos segui-lo.
Sair, portanto, da Igreja oficial? Em uma certa medida, sim, evidentemente. Todo o livro de Jean Madiran, A Heresia do século XX, é a história das heresias dos Bispos. É necessário, portanto, que saiamos do meio destes Bispos, se não desejamos perder nossa alma.
Mas isso não é suficiente, posto que é em Roma que a heresia se instalou. Se os Bispos são heréticos (mesmo sem tomar este termo no sentido e com as conseqüências do direito canônico), não é sem a influência de Roma.
Se nós nos distanciamos deste tipo de gente, é com a mesma precaução que se toma para com as pessoas que estão com AIDS. Não queremos nos contaminar. Ora, eles estão com AIDS espiritual, uma doença contagiosa. Se quisermos guardar a saúde, não devemos aproximarmo-nos deles.
Sim, o liberalismo e o modernismo se introduziram no Concílio e no interior da Igreja. São idéias revolucionárias e a Revolução, que encontrávamos na sociedade civil, passou para dentro da Igreja. O Cardeal Ratzinger não mais esconde esse fato: eles adotaram as idéias não da Igreja, mas do mundo e eles acham que devem fazê-las entrar na Igreja.
Ora, as autoridades não mudaram sequer uma vírgula de suas idéias sobre o Concílio, o liberalismo e o modernismo. Eles são a anti-Tradição, Tradição como a Igreja compreende e como entendemos. Essa noção não entra no conceito deles. Pois sendo o conceito deles evolutivo, eles são contra essa Tradição fixa, na qual nós nos mantemos. Estimamos que tudo aquilo que nos ensina o catecismo nos vem de Nosso Senhor e dos Apóstolos e que nada mudou. Isto é claro. As três partes do catecismo nos vêm de Nosso Senhor. Por que mudá-las? Nós não podemos evoluí-las. O Credo, os Mandamentos de Deus, os meios de nos salvar, os Sacramentos, o Santo Sacrifício da Missa e a oração, tudo isso, vem diretamente de Nosso Senhor. Tudo isso, é nosso catecismo, que nos é dado, geralmente, com nosso batismo, que nos é colocado entre nossas mãos. Tudo isso é nosso estatuto, desde o momento que Nosso Senhor desejou que todos fossem batizados, que todos adotassem o Credo, o Decálogo, os Sacramentos que Ele instituiu, bem como o Santo Sacrifício da Missa e as orações. Para eles, não, tudo isso evolui e evoluiu com o Vaticano II. O fim atual da evolução é o Vaticano II. É por isso que nós não podemos nos ligar a Roma. Teria sido possível, se tivéssemos podido nos proteger completamente como, de fato, pedíamos. Mas eles não quiseram. Eles recusaram os membros que pedíamos para a comissão, eles recusaram o número de Bispos que pedíamos, recusaram o número de Bispos que eu lhes apresentei. Estava claro: eles não queriam que estivéssemos protegidos. Eles queriam ter-nos diretamente debaixo de seus golpes e poder, assim, impor-nos esta política anti-Tradição da qual eles estão imbuídos.
Roma não mudou
Um exemplo mostra-nos que nada mudou no espírito dos que estão em Roma: em 1º de maio (1988), em Veneza realizou-se um importante congresso sobre a liberdade religiosa nas atuais situações políticas. Esse congresso foi dirigido pelo reitor da Universidade de Latrão, Mons. Pierre Rossano, famoso por suas idéias liberais, e Mons. Pavan, que é o autor de, praticamente, todos os documentos sociológicos publicados desde o Papa João XXIII, de todos os documentos que dizem respeito à sociedade. As encíclicas dos Papas João XXIII, Paulo VI e João Paulo II foram praticamente redigidas por ele. É o grande pensador do Vaticano.
Foram estes dois prelados que fizeram e dirigiram essa reunião de Veneza sobre a liberdade religiosa dentro das situações políticas. É muito interessante notar o que eles dizem a respeito da liberdade religiosa: "Mudança da concepção da liberdade religiosa". Eles não se escondem. Eles falam da influência da Segunda Guerra mundial. Eles buscam motivações longínquas: já sob Pio XII realiza-se uma tomada de consciência da liberdade religiosa, realizada na tragédia da Segunda Guerra mundial. Isso permitiu, para utilizar uma frase estereotipada, A PASSAGEM DO DIREITO DA VERDADE AO DIREITO DA PESSOA.
Examinemos um pouco melhor essa frase. O direito da verdade nos ensina que existe a liberdade da verdadeira religião, mas que o homem não possui a liberdade de escolher a sua religião, de escolher a verdade. Somos feitos e criados com inteligência e vontade livres, não resta a menor dúvida, mas essa liberdade só deve servir para nos fazer aderir à verdade e não a outra coisa. Pois um laço fundamental, essencial, une a liberdade e a verdade. Romper este laço para dizer: a partir de agora, compreendemos que não se trata mais de ligar liberdade com verdade, mas liberdade e natureza humana, é um erro fundamental. Nossa própria natureza, com a inteligência e a vontade, é feita para aderir à verdade. E, eis que agora (e os autores do congresso de Veneza o escreveram em seus relatórios) suprime-se o direito da verdade (que é o laço que por natureza une o sujeito à verdade) para colocar em seu lugar o direito da pessoa, um direito inteiramente independente. Esse direito estaria fundado sobre a natureza, mas considerada dentro de sua dignidade de sujeito livre, ou seja, autônomo e sem laços. E os ditos autores precisam que isso deve ser particularmente verdadeiro em matéria religiosa, que trata da orientação da vida. É preocupante. Como se pudéssemos mudar coisas tão profundas na natureza. Deus nos criou para a verdade, Ele não nos deu a liberdade para escolhermos o erro. Não é possível. Não temos o direito ao erro. Ora, praticamente, é a isto que conduz a liberdade religiosa: permitir à natureza de escolher livremente a sua verdade, é dar-lhe direito ao erro.
E, segundo essa teoria, todos os países deveriam aceitar isso, sem se lhe opor no limite da ordem pública. Mas a ordem pública é muito extensa! Estas sociedades deveriam aceitar o ecumenismo, a laicização dos estados, a liberdade de culto. Elas deveriam reconhecer como diretivas tudo aquilo que o homem pode retirar de si mesmo, as idéias que puderem conceber, os conceitos religiosos forjados por eles mesmos.
Depois da afirmação da liberdade religiosa, eles reafirmam o princípio absolutamente revolucionário da Declaração dos Direitos do homem. É verdadeiramente um princípio satânico: "non serviam", “eu não quero servir”, não quero ser submisso à verdade. Mas se Deus nos impõem uma verdade, assim será. "Aquele que não crer será condenado". Que exista a tolerância religiosa pelo fato das pessoas enganarem-se, é admissível, mas o princípio da liberdade religiosa não existe e não pode existir.
Eu tinha que vos dizer isso, para que vejais bem, que Roma não mudou em nada. Não é uma acusação vazia, mas retirada dos relatórios oficiais da reunião de Veneza, que aconteceu recentemente: 1º de maio. O reitor da universidade de Latrão é a cabeça de toda a formação universitária da Igreja de Roma. São os representantes oficiais de Roma. E eis o que eles reafirmam. Nada mudou. Não podemos seguir pessoas como estas. São erros graves, profundos.
Aconteça o que acontecer, devemos continuar, e o bom Deus nos mostra que seguindo esta via nós cumprimos o nosso dever. Não negamos a Igreja Romana. Não negamos a sua existência, mas não podemos seguir suas diretivas. Não podemos seguir os princípios do pós-Concílio. Nós não podemos ligar-nos a eles.
Só existe uma Igreja... a Igreja conciliar!
Percebo a vontade de Roma de nos impor suas idéias e suas maneiras de ver. O Cardeal Ratzinger sempre me diz: "Mas Excelência, existe apenas uma Igreja, não se deve fazer uma Igreja paralela". Qual é esta Igreja, para ele? A Igreja conciliar, é evidente. Quando ele nos disse explicitamente: "Evidentemente, se lhe damos, neste protocolo, alguns privilégios, o senhor deve, também, aceitar o que fazemos; e conseqüentemente, na Igreja São Nicolas-du-Chardonnet deve-se celebrar uma Missa Nova todos os domingos", vós bem vedes que eles querem nos arrastar para a Igreja conciliar. Isso não é possível, pois, é claro que eles querem nos impor essas novidades para acabar com a Tradição. Eles não concederão nada por estima pela liturgia tradicional, mas, simplesmente, para enganar aqueles a quem eles o oferecem e para diminuir nossa resistência, encontrar uma brecha no bloco tradicional para destruí-lo. É a política deles, sua tática consciente. Eles não se enganam, e vós conheceis a pressão que eles fazem. Entre vós, alguns já foram pressionados pelo Bispo ou por outrem para deixardes a Tradição. Eles fazem esforços consideráveis em todos os lugares.
As irmãs de Saint-Pré foram visitadas pelo Pe. Philippe que tentou doutriná-las. Mas vos asseguro que ele não foi recebido de braços abertos. O Bispo de Carcassonne ofereceu amizade e compreensão para com as irmãs de Fanjeaux e ao nosso Pe. Pozzera. E o bispo também foi devidamente convidado a se retirar. Mas eles continuam. Eles voltarão. O Pe. Innocent-Marie telefonou-me recentemente e me disse que ele estava sendo vítima de pressões do Bispo de Angers. Agora eles não cessarão de tentar nos capturar. É verdadeiramente incrível essa guerra movida contra a Tradição. [...]
Penso que se deve evitar tudo aquilo que puder manifestar, por meio de expressões muito duras, nossa desaprovação àqueles que nos deixam. Não devemos enchê-los de epítetos que podem ser vistos como injuriosos. Isso de nada nos serve, pelo contrário. Pessoalmente, sempre tive essa atitude para com aqueles que nos deixam - e Deus sabe quantas vezes isso aconteceu durante a história da Fraternidade; a história da Fraternidade é quase que a história das separações - Sempre tive como princípio: não mais ter relações, acabou. Eles nos deixaram, eles irão a outros pastores, a outros rebanhos: nenhuma relação mais. Tanto aqueles que partiram como "sedevacantistas" quanto aqueles que nos deixaram por não sermos suficientemente papistas, todos tentaram engolfar-nos em uma polêmica. Eu nunca respondi uma palavra. Rezo por eles, é tudo. [...]
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